“Amigaaaaaa!!!Amigaaaaa!!!”
A primeira vez que ouvi uma senhora gritar assim na porta de casa, fiquei assustada. Será que aconteceu algo, me perguntei. Mas a voz continuava a gritar, mais alta. Deixei o que estava a fazer no escritório e fui até a porta, abri e apareceu uma mulher baixinha, com um grande sorriso e uma bacia enorme na cabeça cheia de verduras: “Amiga tem couve, tem tomate, cenoura, berinjela, cebola.” Eu ainda estava a olhar para ela com boca aberta tipo não estou a entender, enquanto ela estava a baixar para pousar a bacia no chão. Sò naquele momento dei conta da barriga dela e me perguntei se talvez tivesse gravida. Meses depois, quando Amiga desapareceu durante alguns tempos, é que nasceu a Mireusa, uma bebé linda que começou logo a acompanhar a mãe na zunga, amarrada nas costas dela. Desde aquele primeiro dia, de facto, quase que paramos de ir comprar verduras no mercado, porque Amiga passava todos os dias, de segunda a sábado e uma etapa ao nosso portão era obrigatória!
Estefania Cateque Ngueve, conhecida por Fanny, nasceu em Benguela em 1 de Dezembro 1987. Quando descobri a sua idade fiquei surpreendida porque achava que ela fosse mais velha do que eu. Amiga cresceu no Huambo, depois dos pais terem separado a mãe decidiu voltar na sua terra natal com os filhos mais pequenos. Eram 7 irmãos, mas hoje só 4 ainda estão vivos. Amiga conta-me sobre aqueles tempos na casa da sua mãe: ela não gostava muito porque o seu irmão fazia muita confusão, preferia ir na casa da avo, porque ela guardava a panela para ela lamber, e começa a rir “Agora lá na casa da minha mãe como eram buè (muitos) não vai encontrar nada, jà comeram tudo!”
Ficou no Huambo durante a guerra e lembra como foi um período muito duro, de muito sofrimento. A guerra determinou muito a sua vida e principalmente a sua educação: era difícil eles ter aula normalmente, os professores eram corridos, portanto ela mal aprendeu a escrever o seu nome, mas não consegue distinguir bem as letras uma da outra. Se ela pudesse gostaria de voltar a estudar, mas a vida continua a ser dura com ela. Voltou em Benguela em 2003, depois da guerra terminar, na casa do seu pai. Ainda uma moçinha, começou logo a trabalhar como zungueira, ou seja vendedora ambulante. Enquanto conta-me daqueles primeiros tempos, lembra-se das dificuldades “Quem me ensinou foi a minha irmã. Eu não conseguia vender, os meus pés inflamavam, dizia não vou vender mais, mas ela dizia não, tens que vender, trabalhar, para ganhar o seu dinheiro.” A Fanny, recém chegada em Benguela, não conhecia a cidade e devia seguir a sua irmã, que vendia verduras enquanto ela vendia as frutas. Só depois da sua irmã casar e voltar para o Huambo, a Fanny ficou com o seu lugar de zungueira da verdura.
Mas o dia a dia da zungueira é duro! Ela acorda as 5 horas, prepara a sua casa, o mata-bicho para o seu filho que vai na escola, depois apanha um taxi para a praça nova (a praça do 4 de Abril, também conhecida simplesmente como “o 4”), aonde pega o negocio, depois vai no bairro do Calombo. Daí chega no centro da cidade, arruma bem o produto e começa a zungar. Lá para as 16 horas volta para a sua casa. Quando pergunto como é que funciona o seu negocio, ela me explica “Eu compro na praça nas senhoras que vendem no quintalão, primeiro aonde vendem cenoura, tomate, repolho, depois vou no quintal aonde vendem limão, sai mais venho aqui nas verduras pego alface, couve, pepino, salsa, coentro, assim ja saio daí, pego o taxi e venho aqui na cidade. O que não acabou (de vender) deixo aqui na cidade numa amiga, porque se eu levar lá em casa as vizinhas vão acabar por pedir tudo” termina essa frase rindo, com aquela risada alegre que sempre leva com ela.
E não é tudo: muitas vezes as zungueiras são corridas pelos fiscais da policia, porque legalmente o seu trabalho não é permitido (mas eu me pergunto: o que seria Angola sem as zungueiras e os outros vendedores ambulantes?). Outros dias a policia invés está atras dos motoqueiros, como no dia da nossa conversa: não era possível entrar na cidade por causa de uma operação stop, o motoqueiro que lhe levou do bairro da Graça aonde ela vive, deixou-lhe na rua porque não queria passar pelo bloco policial.
Eu não sei mesmo como ela consegue aguentar andar todo o dia debaixo do sol, com todo aquele peso na cabeça: ela começa no campo de tênis, aonde arruma as verduras e as vezes passa 3 vezes na mesma rua para encontrar os seus clientes. De facto eu sinto-me mal quando ela passa e não estou em casa, porque
depois ela vai ter que passar mais vezes até me encontrar. O pior é que este trabalho não permite de ganhar um dinheiro certo: há dias que não vende quase nada, 500 kwanzas è sorte, assim pode tirar só umas verdurinhas para fazer canja para as crianças comer. Quando não tem dinheiro vai pedir empréstimo na vizinha, com juro, “1000 vem com 1000”. Também o marido não ajuda, “ele tem bué (muitas) de mulheres, vai para aí, vai para lá, já não lhe ligo. Vem como não, já estou na casa dele, ele è que sabe.”
Fico muito triste a pensar que esta mulher tão simpática e alegre tenha uma vida tão difícil, assim pergunto sobre os seus filhos mas as noticias que me dá são ainda piores infelizmente. Ela é mãe de 6 crianças mas 4 já faleceram, todos por causa de doenças, um atras do outro. Fizeram tratamento tradicional “numa santa”, pensando que fosse alguém que estava a praticar feitiço contra eles, mas essa pessoa, “a sombra” como ela chama-lhe, já morreu e assim pararam as doenças estranhas. Mana Fanny conta-me como morreu o seu primeiro filho, que na altura da nossa conversa deveria ter 13 anos (hoje 14 anos), nasceu em 2004 e faleceu em 2005. “O miúdo estava sempre com febre, diziam que precisava de sangue, fomos no hospital fazer analise, o doutor que lhe visitou disse que o miúdo estava bom, deu só comprimido a tomar, paracetamol e metrozedon para a barriga. Chegamos em casa e o miúdo começou a complicar de novo e depois morreu. Depois veio uma miúda bem bonitinha, Joia, mas também morreu. Agora só fiquei com 2, a Mireusa de 1 ano e o Janilson que tem 10 anos (idade em Julho 2018).” Ela para de falar e sinto uma nota de tristeza na sua voz, decido não insistir em perguntar mais.
Nem consigo imaginar o que deve sentir uma mãe em perder um filho, então 4…eu se fosse no seu lugar provavelmente estaria numa clinica psiquiátrica ou pior…mas ela continua a sua vida com uma força e uma energia incríveis. Os angolanos são pessoas alegres normalmente, mas como a mana Fanny é raro encontrar: ela está sempre a sorrir, transmite uma grande alegria ao conversar com ela, com o sotaque bem marcado de quem aprendeu a falar português no interior, sempre com uma frase pronta e a risada de graça.
Admiro muito esta mulher que teve que passar por muitas dificuldades e infelicidades, que deve cuidar sozinha dos filhos mas que não deixa de lutar. Agora é passado um ano da nossa conversa original, a irmã caçula veio viver com ela do Huambo e ajuda-lhe em casa e com as crianças, mas claro è uma boca a mais para sustentar também. Desde alguns meses Amiga passou também a nos ajudar em casa na limpeza, 2 dias por semana, assim consegue ganhar um dinheiro fixo por mês e os outros dias ela continua a zungar e nos a comprar as suas verduras. A primeira vez que recebeu o seu salário ela ficou tão feliz, não parava de me abraçar. Sei que não é muito, mas também já é alguma coisa. Depois somos amigas e isso é o mais importante para mim.
A cada vez que vejo uma zungueira na rua penso na mana Fanny, em todas as mulheres angolanas lutadoras que devem enfrentar a vida sozinhas, com criança nas costas e bacias enormes na cabeça.
Escrito por: Miriam Bacchin